" Reflexões a
partir dos Ashaninka do Acre fronteira com
o Peru"
Edilene Machado Barbosa ¹
Introdução
A presença
indígena em zona de fronteira internacional, principalmente na região amazônica, constituiu uma preocupação permanente para o Estado brasileiro. A demarcação de terras indígenas
nessas regiões é um dos principais focos de tensão
política. Os povos indígenas em região de fronteira são vistos como uma
ameaça à nação. Embora sejam brasileiros e suas terras propriedade da União, sua nacionalidade é questionada
e são frequentemente acusados de servir, de modo ingênuo, a interesses estrangeiros.
A tese segunda a
qual a demarcação de terras indígenas em faixa de fronteira possibilitaria a criação de nações
indígenas e favoreceria a chamada "internacionalização da Amazônia", em uma áreas de fronteira
internacional considerada vazias, a formação de nações indígenas
Nesta comunicação, após relembrar a importância histórica dos povos indígenas para a consolidação das fronteiras
brasileiras, procurarei mostrar a falácia dessa tese a partir do caso dos índios Ashaninka do rio Amônia que vivem no
Alto Juruá (Estado do Acre), na fronteira do Brasil com o Peru.
1-Os povos indígenas na construção das fronteiras
do Brasil.
Na Amazônia,
como alhures, os povos indígenas
foram repartidos arbitrariamente entre os Estados-nação que
se partilharam a região após os tratados sucessivos
de delimitação territorial e os processos de independência. Até recentemente, essas populações eram objetos de políticas
indigenistas, que, apesar de suas diferenças
nacionais, tinham um comum objetivo: a assimilação progressiva dos índios
às novas nações em construção.1 Apenas nas últimas
duas décadas, essa situação parece ter mudado,
pelo menos do ponto de vista legal, com a adoção em vários países, inclusive no Brasil, de Constituições nacionais que
rompem com as ideologias assimilacionistas e
procuram reconhecer a
pluralidade étnica de sua população.
No processo de
formação do Brasil como Estado-nação, a diplomacia brasileira destaca o papel de dois grandes homens,
considerados decisivos na definição das nossas
fronteiras. O primeiro é Alexandre de Gusmão que, ainda sobre a
orientação da Corte Portuguesa,
negociou o Tratado de Madri em 1750, que substituiu o velho Tratado de Tordesilhas e consagrou o princípio do uti possidetis, que garantia o direito à
posse ao ocupante de um território. O
segundo é o Barão do Rio Branco que contribuiu para dar forma final ao território brasileiro, assinando tratados de
limites com os países vizinhos e resolvendo
quase todas as questões de fronteiras herdadas do Império. A importância histórica
desses dois heróis da Pátria não deve ocultar o fato que a formação
e consolidação do Brasil também resultam de um processo
de conquista territorial caracterizado pela incorporação progressiva dos povos indígenas
e de seus territórios (Lima, 1995;
Little, 2002). 1 Os laços étnicos eram considerados como incompatíveis com a lealdade
nacional em construção.
Embora tenha se
dado, muitas vezes, contra os índios, o processo histórico de “territorialização” do Estado brasileiro também contou, de modo decisivo,
com a participação ativa desses povos. À sombra dos heróis da nação,
os povos indígenas tiveram um papel
fundamental para a consolidação das nossas fronteiras que, desde o Tratado de Tordesilhas, que dividiu
arbitrariamente o Novo Mundo em 1494, foram expandidas e se consolidaram graças às aliança
entre índios e portugueses. Essas alianças
foram necessárias para garantir as posses territoriais em disputas com os
países vizinhos.
No período
colonial, por exemplo, criou-se uma divisão fundamental entre duas categorias: “índios mansos” e “índios
bravos”. Enquanto, os “bravos” eram considerados inimigos e vistos como estrangeiros, justificando as chamadas
“guerras justas”, os “mansos”
eram pensados como elementos de fortalecimento da autoridade política da Coroa.
Produtos da catequização, eram vassalos do Rei
e defensores das fronteiras.
Vários
antropólogos já salientaram o papel ativo dos povos indígenas para a definição e manutenção das atuais
fronteiras na região amazônica no período colonial. Farage (1991) e Santilli (1995),
por exemplo, mostraram
que as disputas entre portugueses e holandeses para a ocupação
do território do Rio Branco (hoje Estado de Roraima)
envolveram os povos indígenas numa teia complexa de relações de alianças e guerras
que foram decisivas
para assegurar o domínio português
e, posteriormente, brasileiro na região. O mesmo ocorreu
nas disputas entre espanhóis e portugueses na faixa
de fronteira ao longo do rio Guaporé (Meireles 1989). Parte do território do
Mato Grosso foi incorporada ao Brasil graças às alianças
dos portugueses com os índios
Kadiweu.
O papel dos povos
indígenas como guardiãs das fronteiras também foi estimulado pela República. Cabe lembrar que a
política indigenista brasileira republicana foi criada por um militar, Marechal Cândido da Silva Rondon, que fundou o
SPI em 1910, primeiro aparelho de
Estado instituído para definir e gerir a questão indígena. Como bem mostrou Antonio Carlos de Souza Lima (1992; 1995),
o órgão indigenista continuou atuando para a
construção dos limites políticos e simbólicos da nação, exercendo um papel
geopolítico fundamental. Demarcando e ocupando territórios, o SPI fortaleceu o processo de construção da geografia nacional, imprimindo as marcas do Estado nos sertões.
Ao mesmo tempo em
que garantia oficialmente parcelas do território nacional aos povos
indígenas, estes eram vistos como vivendo à margem da civilização e deviam ser incorporados,
pela educação e o trabalho, à comunhão nacional. Essa incorporação era feita in
loco, mantendo os índios nas regiões onde se encontravam para povoar os
sertões e guardar as fronteiras.
Desse modo,
nacionalizar os índios era fortalecer as fronteiras e assegurar o controle sobre os territórios mais isolados da
Nação. As duas propostas caminhavam
juntas e, de certa forma, continuavam, com uma nova roupagem, as política coloniais.2
A ênfase na
nacionalização dos índios ou “silvícolas”, como eram chamados, passava
pela incorporação dessas populações como “guardas de fronteiras”. Essa idéia foi claramente exposta
na década de 1930, quando o SPI passou a incorporar o Ministério
da Guerra, integrando a Inspectoria Especial de Fronteiras, da qual Cândido Rondon fora chefe até 1930, na órbita do
Estado-maior do Exército (Lima: 1992: 164- 165).
Um novo regulamento, instituído pelo decreto n° 736 de 6 de abril de 1936, marcava explicitamente essa preocupação
com a nacionalização dos “silvícolas” em objetivava
integrá-los à Nação como “guarda de fronteiras” (Ibid). O SPI devia trabalhar para que os índios dessas áreas não cedessem
à atração das nações limítrofes, desenvolvendo neles uma pedagogia de civismo capaz de fomentar
seus sentimentos de nacionalidade.
Nas fronteiras, os postos indígenas procuravam atrair e fixar em território brasileiro os índios localizados próximos
aos limites internacionais do país. Apenas brasileiros
natos podiam exercer funções de natureza educativa e fomentar o caráter nacional dos índios. Num relatório de 1939
sobre a organização das fronteiras, dirigido
ao Ministro da Guerra, o General Rondon apresentava os índios das regiões como aliados naturais
do Exército e mostrava-se contrário
à educação ministrada pelas Missões, prejudicial, segundo ele, à “formação viril do
caráter selvagem”.
Nessa política, os
índios não deixavam de ser sendo vistos como inferiores e o tratamento que lhes era dado era ambíguo e
contraditório. Por seus “dotes naturais”, ou
seja, as características guerreiras “inatas de sua raça”, eles serviriam
espontaneamente a Pátria como “guardas de fronteira”, sendo, ao mesmo tempo, considerados povos imbeles e
inocentes, que estagnavam na infância da humanidade e necessitavam da proteção
fraternal do Estado para ser conduzidos
à Civilização.
Esse rápido panorama histórico
mostra que os povos indígenas, mesmo considerados pejorativamente e etnocentricamente povos inferiores, foram atores chave
2 Na
realidade, elas nunca foram abandonadas e guardam, ainda hoje, ressonâncias no
imaginário militar, por exemplo.
no processo de
conquista, delimitação e consolidação das fronteiras brasileiras. A mesma ideologia militar que vê os índios como
ameaça a soberania nacional fez deles um dos
pilares dessa soberania. Certamente
não é por acaso que temos hoje cerca de 30% da
Faixa de Fronteira ocupada por Terras Indígenas. Esse fato resulta de
uma estratégia histórica de ocupação deste imenso território que foi empurrando as populações indígenas para o interior, ao mesmo tempo
em que combinava com elas a própria defesa do País.
Hoje, os índios que vivem na Faixa de Fronteira continuam
garantindo a soberania
brasileira. Executam diversas
políticas públicas com diferentes órgãos governamentais,
tanto a nível federal, como estadual ou municipal: programas de saúde, educação, meio ambiente, etc. Embora tenha
problemas na fronteira, é
interessante notar que o Brasil é o
único país do BRIC3 que não tem problemas de fronteira. Os povos indígenas contribuíram historicamente para a construção e consolidação da unidade territorial do Brasil.
2-
Os
Ashaninka no Acre: A chegada
do Brasil
Os Ashaninka,
conhecidos durante muito tempo na literatura etnográfica como "Campa", pertencem ao tronco
etnolingüístico Arawak, mais especificamente à família dos Arawak sub-andinos ou pre-andinos. Com uma população em
torno de 100 mil indivíduos, eles são
um dos povos indígenas mais numerosos da região amazônica, sendo o principal grupo indígena da Amazônia
peruana. O território ashaninka estende-se por
uma vasta região,
do piemonte dos Andes centrais
no Peru à bacia do Alto Juruá no estado
brasileiro do Acre.
Como muitas outras
populações indígenas da Amazônia (Yanomami, Wayãpi, Macuxi, Wapichana, Tikuna, etc.), os Ashaninka foram separados
arbitrariamente por fronteiras
políticas, resultado dos processos de territorialização coloniais e da formação dos Estados-nação,
e estão hoje presentes no Peru e no
Brasil.
No caso dos
Ashaninka, essa divisão entre os dois países é, no entanto, muito desigual.
A grande maioria desse povo indígena vive em terras peruanas. No Brasil, sua
3 O BRIC é a sigla usada para qualificar os principais países
emergentes: Brasil, Rússia,
Índia e China.
presença sempre
foi extremamente reduzida, limitando-se, hoje, a cerca de mil indivíduos que habitam cinco Terras Indígenas
descontinuas, todas situadas no Acre, na região do Alto Juruá. Perto da metade da diáspora ashaninka do Brasil vive
na Terra Indígena Kampa do Rio
Amônia, demarcada em 1992 pela FUNAI com 87.205 ha e que faz fronteira
com o Peru. Apesar de sua pouca relevância em termos demográficos, a presença dos
Ashaninka em território acreano não deixa de ser importante do ponto de vista histórico e político.
Em março de 2007,
Márcio Paulo Buzanelli, então Diretor General da ABIN, foi convidado para discursar numa sessão da
“Comissão da Amazônia, Integração Nacional e
Desenvolvimento Regional” no Congresso Nacional em Brasília. Após falar
sobre os problemas de biopirataria,
que ela associava somente à cobiça internacional, pois nesse registros, todos os problemas
parecem estar ligados
aos “estrangeiros”, Buzanelli
respondeu à preocupação de um parlamentar sobre o narcotráfico na região
do Alto Juruá, principalmente no
rio Amônia.
O antigo diretor geral da ABIN insinuou, primeiro, que muita cocaína entrava
em território nacional
pela Terra Indígena
Kampa do Rio Amônia e, segundo, afirmou:
“Campa e Ashaninka
são índios que vieram do Peru e ganharam uma terra indígena aqui”. Espero que a
ABIN, cuja missão é garantir a segurança do Brasil
e de seus habitantes, esteja mais informada sobre as reais ameaças ao país do
que o seu antigo diretor estava em relação
à história dos Ashaninka.
Ouvi várias vezes,
líderes ashaninka, responder, com uma mistura de ironia e irritação, a jornalistas que,
impressionados pelas suas Kushma,
vestimenta tradicional (parecidas com
as roupas de índios andinos), perguntavam se eram índios brasileiros ou peruanos. A essa pergunta, as lideranças
respondiam sempre dizendo que nasceram e moram
no Brasil, que têm documentos brasileiros, que falam o português, etc.
Uma outra
resposta, que as lideranças ashaninka do Rio Amônia davam com freqüência aos jornalistas questionadores
de sua nacionalidade, poderia também ser dada
ao antigo diretor da ABIN. Os Ashaninka dizem com freqüência: “Nós não
viemos para o Brasil, o Brasil é que chegou até nós”. Embora esse fato não seja necessário para assegurar a
defesa de seus direitos territoriais em solo, hoje brasileiro, essa frase
procura fazer justiça a uma versão da
história que foi constantemente negada pela história oficial acreana.
De
fato, narrativas recolhidas no Alto Juruá confirmam que a presença Ashaninka na região data, pelo menos, do final do
século XIX, ou seja, antes do Acre se tornar
território brasileiro. No contexto histórico da colonização do Acre, o
contato dos Ashaninka com os brancos
se produziu de modo muito singular.
Embora tenham participado ativamente do extrativismo itinerante do caucho, os Ashaninka, contrariamente à
maioria dos pov os indígenas da região, nunca foram sedentarizados nos seringais. Durante
o auge da economia da
borracha, no final do século XIX e início do século XX, eles procuraram ocupar áreas pobres em seringa
e valorizar sua fama guerreira
e suas habilidades comerciais
em suas relações com os colonos, atuando, sobretudo, como guerreiros e parceiros de troca dos brancos.
Na
região do Alto Juruá e principalmente no rio Amônia, os Ashaninka foram fundamentais para dizimar os “índios brabos”,
sobretudo os Amahuaka,
e garantir a segurança dos seringais e sua viabilidade econômica. Certamente,
esse papel dos Ashaninka como guardiãs dos seringais, pelo tamanho muito reduzido dessa população na região e pela
sua presença circunscrita a uma área muito delimitada, não influenciou em nada a história geral do Acre e sua incorporação ao Brasil;
no entanto, esse fato não deixa de ser relevante para o conhecimento da
história local e para mostrar que os
índios nunca foram figurantes passivos da história.
Com o declínio da
economia da borracha, durante a maior parte do século XX, os Ashaninka do rio Amônia continuaram
mantendo um comércio regular, baseado no regime
do aviamento, com pequenos patrões da região. Na década de 1980, eles se mobilizaram contra a exploração intensiva
de madeira de lei em seu território promovida
por empresários e políticos da região. Criaram uma cooperativa e uma
associação e participaram ativamente da “Aliança dos Povos da Floresta” que teve um papel fundamental no reordenamento territorial
do Estado do Acre a partir dos anos de 1990.
Em 1992, conseguiram a demarcação de sua terra e começaram a
desenvolver, com diversos parceiros
do indigenismo, uma série de projetos econômicos dentro do paradigma do “desenvolvimento
sustentável”. Ao longo dos últimos quinze anos, essa ideologia do “desenvolvimento sustentável” continuou norteando a
política Inter étnica dos Ashaninka do
Rio Amônia que conquistaram uma visibilidade inédita no cenário do indigeníssimo regional, nacional
e até internacional. No entanto,
a partir do final da década de 1990, novas invasões madeireiras, desde da vez vindas do Peru, vieram ameaçar
o modo de vida dos Ashaninka.
3-A luta dos Ashaninka em defesa da fronteira Brasil-Peru no Alto-Juruá
Desde a década de
1990, a Amazônia peruana conhece uma profunda dinâmica de re-ordenamento territorial que se traduz
por uma exploração predatória e desorganizada
de seus recursos naturais. Políticas
governamentais incentivam a concessão de importantes parcelas
de floresta para a exploração madeireira.
Os departamentos do Ucayali e de Madre
de Dios, que fazem fronteira com o Acre, passaram a viver um verdadeiro boom de exploração madeireira.
Intimamente vinculada ao poder político e econômico,
essa exploração trouxe um impacto socioambiental considerável, atingindo, principalmente, os territórios indígenas.
Essas políticas também acabaram por impactar a
área de fronteira e invadindo o território brasileiro, principalmente,
na região do Alto Juruá.
No final da década
de 1990, os Ashaninka do rio Amônia foram os primeiros a denunciar às autoridades brasileiras as invasões de madeireiras
peruanas em sua terra e, portanto, em
território nacional. As primeiras denúncias não surgiram efeito e as invasões se intensificaram no final do ano 2000
com importantes danos ambientais.
Os Ashaninka
lançaram então uma vasta campanha de denúncias na imprensa regional e nacional
que ganhou rapidamente repercussões internacionais. Os índios ameaçaram
expulsar os invasores
pela força caso as autoridades brasileiras não tomassem
as providências necessárias para pôr fim às invasões de sua terra.
A amplitude
dessas denúncias levou o governo
federal a iniciar,
no final de dezembro
de 2000 e em janeiro de 2001, a chamada Operação
Ashaninka. Coordenada pela
Polícia Federal, essa operação contou com a participação da Força Aérea
Brasileira (FAB), do IBAMA, da FUNAI,
de representantes do Instituto de Meio Ambiente do Acre (IMAC) e do comando da Polícia Militar de Cruzeiro do Sul.
Ela
averiguou que os madeireiros peruanos
tinham avançado cerca de dez quilômetros em território brasileiro, aberto pelo menos oito clareiras na
floresta e retirado madeiras nobres da terra indígena e do Parque Nacional da Serra Divisor, que faz limite com a
terra dos Ashaninka e com o país
vizinho.
A impressionante força militar mobilizada pela Operação Ashaninka e as promessas
das autoridades em fiscalizar a fronteira e iniciar um diálogo com o Peru sobre a questão das invasões madeireiras
contribuiu para apaziguar temporariamente o clima de tensão na área.
As repercussões na imprensa nacional
e internacional das denúncias dos Ashaninka
também levaram o governo brasileiro a iniciar negociações diplomáticas com o Peru. Por ocasião da “V Reunião do Grupo de Trabalho Brasil-Peru
sobre o Meio Ambiente”, realizada
em Brasília em agosto de 2001, as duas Chancelarias criaram o “Grupo
de Cooperação Ambiental Fronteiriça Brasil-Peru”, cuja coordenação ficou a cargo do IBAMA, do lado brasileiro, e do
INRENA, para o Peru (Iglesias e Aquino, 2006:
32).
No entanto, as
invasões de madeireiros peruanos continuaram entre 2001 e 2003. No final de fevereiro de 2003, frente à ineficiência da fiscalização dos órgãos do Estado, o presidente Associação Ashaninka do Rio
Amônia denunciou as autoridades brasileiras ao Ministério Público Federal (M.P.F).
A pedido dos
Ashaninka, o M.P.F entrou com uma Ação Civil Pública contra a União para que os órgãos de Estado
cumprissem seu dever de vigilância e fiscalização nessa porção de fronteira amazônica,
colocando um fim às invasões.
Em março de 2004, a Justiça Federal do Acre, condenou a
União a reavivar os marcos fronteiriços entre o Brasil e o Peru no Alto Juruá e a estabelecer postos de
fiscalização da Polícia Federal, IBAMA, FUNAI e do Exército na região. Essa condenação, ao meu conhecimento inédita, e o impacto causado por uma nova fase de denúncia dos
Ashaninka na imprensa nacional e
internacional decorrente de novas invasões no verão de 2004, levou o Estado brasileiro a reforçar sua presença
na região.
O IBAMA, a Polícia
Federal e o Exército passaram a organizar periodicamente uma série de operações para fiscalizar a região de fronteira principalmente a Terra Indígena Kampa do Rio Amônia e o Parque
Nacional da Serra do Divisor. Nessas operações,
muitas delas acompanhadas pelos Ashaninka, dezenas de madeireiros foram presos,
ramais e acampamentos destruídos e milhares
de metros cúbicos
de madeira foram apreendidos e dinamitados. Cabe
notar que essas operações também destruíram laboratórios
clandestinos de pasta base de cocaína, instalados em território brasileiro por traficantes peruanos. Um problema que os
Ashaninka vêm também denunciando há anos sem ser ouvidos.
Essas operações
são resultado direto da intensificação da mobilização política dos Ashaninka ao longo do ano de 2004. Com o apoio de vários parceiros, eles mobilizaram a mídia e sensibilizaram a opinião
pública e alguns responsáveis políticos. O auge da mobilização dos Ashaninka
ocorreu entre 20 e 24 de setembro de 2004, em Brasília,
com a realização da Semana Ashaninka.
Durante esse
evento, os índios apresentaram suas iniciativas
pioneiras na conservação e no uso sustentável dos recursos naturais, mas, sobretudo, divulgaram as dificuldades vividas por eles com a constante invasão
de madeireiros ilegais em seu
território.
Durante o encontro, as lideranças se reuniram
com responsáveis da cooperação internacional e autoridades políticas
e institucionais brasileiras: ministros, deputados
federais, senadores, presidente do IBAMA, da FUNAI, responsáveis do
Exército, da Polícia Federal, etc.
A semana Ashaninka foi amplamente divulgada pela imprensa
nacional. Uma equipe de reportagem da
Rede Globo, por exemplo, esteve na terra indígena e mostrou os prejuízos que as invasões causavam aos
índios. O tema foi destaque no Jornal
Nacional e objeto de uma matéria
apresentada no programa
Fantástico da Rede Globo
em sua edição de 26 de
setembro de 2004.
Símbolo dessa luta
dos Ashaninka, no dia 9 de dezembro de 2004, a liderança Benki Pianko foi homenageada, em Brasília, com o Prêmio de
Direitos Humanos 2004, concedido pela Secretaria Especial
de Direitos Humanos
da Presidência da República, em reconhecimento da luta de seu povo na
defesa de sua terra, da floresta amazônica e,
cabe frisar, das fronteiras do Brasil.
Em fevereiro de
2005, na aldeia ashaninka, foi realizada uma reunião com a presença do comandante militar da
Amazônia, três generais e agentes do serviço de inteligência do Exército, o procurador da república e o
governador do Acre, além de deputados federais
e estaduais. Nessa ocasião, as lideranças indígenas
reiteram suas reivindicações às autoridades que se
comprometeram a continuar as ações de vigilância e fiscalização, anunciando a instalação de um pelotão do Exército
na foz do rio Amônia ; pelotão que de fato foi instalado em 2007 (Iglesias e Aquino 2006pg 5).
No mês seguinte,
uma liderança ashaninka integrou uma comitiva do governo acreano em visita ao então Presidente do Peru, Alejandro
Toledo, para discutir
as perspectivas de integração econômica
abertas pela pavimentação da denominada “Rodovia Transoceânica”. Durante essa
viagem à Lima, a liderança ashaninka e o então
governador Jorge Viana pediram a interrupção imediata
das invasões madeireiras e cobraram do Presidente peruano
garantias para a proteção do meio ambiente
e das populações tradicionais na região de fronteira.
Embora essencial,
os Ashaninka perceberam muito rapidamente que as ações de vigilância e fiscalização da fronteira não eram suficientes para pôr fim às invasões.
Uma solução duradoura para o
problema demandava uma ampla articulação política, movendo esferas do governo federal, estadual e a
sociedade civil organizada. Com o apoio de diversos
parceiros, as lideranças Ashaninka começaram a construir essa agenda política que foi crescendo
nos últimos anos e busca traçar diretrizes sustentáveis para o desenvolvimento da faixa
de fronteira Brasil-Peru em toda
a região do Alto Juruá.
Hoje, as
discussões bilaterais entre Brasil e Peru ocorrem em vários níveis e envolvem uma grande variedade de atores. A
nível federal, no Itamaraty, existe o já mencionado “Grupo de Cooperação Ambiental
fronteiriça Brasil-Peru” que foi responsável pela vivificação dos marcos
fronteiriços em 2005, uma das exigências da sentença
proferida contra a União em março de 2004 pela Justiça Federal do Acre após a ação movida
pelo MPF a pedido dos Ashaninka.
Em nível local e
regional, a mobilização dos Ashaninka contra a exploração madeireira e em defesa do desenvolvimento
sustentável, não apenas de seu território, mas
de toda a bacia do Alto Juruá, levou à criação, em abril 2005, na cidade
de Cruzeiro do Sul, do “Grupo de Trabalho de Proteção
Transfronteiriça da Serra do Divisor e Alto Juruá
–Brasil/Peru”.
O Grupo de
Trabalho Transfronteiriço ou GTT, como passou a ser conhecido, reúne um grande número de organizações da sociedade civil e dos movimentos sociais,
da faixa de fronteira Brasil-Peru. Desde sua criação,
o GTT promoveu vários encontros, alguns na aldeia Ashaninka. Nesses
encontros, nos quais representantes de órgãos dos poderes públicos
federal, estadual e municipal são convidados, se discute os problemas socioambientais e as políticas
públicas de desenvolvimento e integração de uma região que apresenta
os maiores índices
de biodiversidade no planeta.
O GTT procura monitorar as invasões madeireiras e traçar diretrizes para um plano binacional de proteção da
biodiversidade e das populações tradicionais da fronteira do Acre com o Ucayali,
na bacia do Alto rio Juruá.
Os Ashaninka
foram os principais incentivadores do GTT o que lhes permitiu colocar o problema das invasões madeireiras peruanas
em sua terra no debate mais amplo das políticas
públicas de desenvolvimento e integração transfronteiriça.
A nível do executivo regional, o
ex-governador do Acre Jorge Viana, também deu
a questão das invasões madeireiras um lugar central
na agenda política
de discussões entre os governos do Acre e do Ucayali.
Assim, em julho de 2006, foi criado o “Fórum Binacional
de Integração e Cooperação para o Desenvolvimento Sustentável da Região Ucayali/Peru e Estado do Acre/Brasil”. Esse Fórum reúne representantes dos governos
federal e regional, organizações indígenas, entidades indigenistas, ambientalistas, empresários e representantes do
mundo universitário dos dois países.
Embora a questão
das invasões madeireiras na Terra Indígena Kampa do Rio Amônia tenha ganhado visibilidade em decorrência das denúncias
dos Ashaninka, essa questão é apenas
parte de um processo mais complexo e multifacetado que passou a ser considerado em sua totalidade. Além dos
Ashaninka, as invasões madeireiras atingem também
o Parque Nacional da Serra do Divisor (PNSD) e, de modo geral, toda a zona de fronteira
do Acre com o Peru, onde vivem ainda povos indígenas considerados “isolados”.
Segundo a FUNAI, essa região de fronteira concentraria a maior população
de índios isolados da bacia amazônica, estimada entre 600 e 1000
indivíduos. A intensa exploração
madeireira está reduzindo o território desses índios isolados. Encurralados, eles buscam refúgio em território
brasileiro e entram periodicamente em confronto com outros grupos indígenas vizinhos ou com brancos regionais.
Às invasões
madeireiras, acrescentam-se, grandes projetos de infra-estrutura, a intensificação do narcotráfico e, mais
recentemente, a decisão do governo peruano de
abrir concessões para a exploração de petróleo e gás na região do
Ucayali e Madre de Dios.
No fundo, trata-se
de embates em torno de políticas desenvolvimentistas para essa região
de fronteira. As instituições governamentais brasileiras não parecem
ainda ter dado a esses problemas a atenção que eles
merecem. As promessas dos discursos não se acompanham
de medidas concretas e eficazes
O “Fórum Binacional de Integração e Cooperação para o Desenvolvimento Sustentável da Região Acre-Ucayali”, instalado pelo
governo do Acre, prometia ser um instrumento
importante para a resolução dos problemas fronteiriços, mas ele só se reuniu uma vez, em 2006, para a sua criação.
Apesar de uma visão bastante progressista em
relação às questões ambientais e indígenas, a agenda política do governo
do Acre para a região do Alto Juruá parece estar essencialmente guiada por interesses econômicos, exemplificados
pelas discussões em torno da integração viária entre Cruzeiro do Sul e Pucallpa.
O mesmo acontece a nível federal.
Apesar do engajamento de diferentes instituições como a Polícia Federal, o
IBAMA e o Exército em ações de fiscalização e
combate às atividades ilegais, essas operações têm pouco efeito
dissuasivo e apenas constatam fatos consumados. O “Grupo de Cooperação Ambiental fronteiriça Brasil- Peru”, criado em 2001, após as denúncias dos Ashaninka, realizou
algumas reuniões, mas, tirando
a vivificação dos marcos fronteiriços, não houve resultados concretos. Principal promotor
do desenvolvimento predatório na faixa de fronteira, o governo peruano não manifesta vontade política
para abordar essa questão que também parece ser considerada secundária pela Chanceleria brasileira frente a interesses políticos e econômicos vistos como prioritários, tais
como: o apoio do Peru à candidatura do Brasil
ao Conselho Permanente da ONU, a integração viária entre os dois países
que possibilita o acesso dos produtos
brasileiros aos portos do Pacífico, a venda para o Peru do pacote de
Sistema de Vigilância da Amazônia (SIVAN), a venda de aviões para o Peru, etc. (Iglesias
e Aquino, 2006: pg20).
Um caminho
importante para as negociações bilaterais entre o Brasil
e o Peru seria a
harmonização da legislação ambiental entre os dois países. Se existisse uma
real vontade política de ambos os
lados, essa harmonização poderia ocorrer no âmbito do Tratado de Cooperação Amazônica
(TCA) que, embora seja um texto genérico,
possibilita o estabelecimento de acordos bilaterais entre os Estados
membros (Macedo 2008).
Enquanto isso, os
Ashaninka continuam vigiando o seu território e participando da defesa da soberania do país e da
fronteira, atentos a novos sinais de invasões peruana. Organizam e participam ativamente das reuniões periódicas do
GTT, mas, sem vontade política de ambos os países, a situação
tem poucas chances de melhorar.
As invasões de
madeireiras peruanas não são apenas uma violação aos direitos indígenas
e uma agressão ao meio ambiente, são também um problema grave de transgressão da soberania nacional.
Conclusão
Como tentei
mostrar, nos últimos anos, os Ashaninka vêm cooperando com o Exército, a Polícia Federal e o IBAMA na
fiscalização da fronteira do Alto Juruá e na
defesa do território nacional. Desde a Operação Ashaninka de 2001, existe uma confiança mutua entre esse povo indígena e
os órgãos de estado que tem a missão de fiscalizar
essa região.
O panorama
histórico dado no início dessa exposição e o caso Ashaninka expressam, de maneira nítida, a
inconsistência da tese que apresenta os povos indígenas vivendo em região de fronteiras amazônicas como ameaça à soberania
nacional. A mobilização
dos Ashaninka em defesa de seu território e dos limites da nação prova que a
presença dos povos indígenas em região de fronteira, em vez de favorecer a
suposta “internacionalização da Amazônia”, é, pelo contrário, um elemento essencial
para garantir a vigilância
dessa vasta região. Os Ashaninka
foram os primeiros a denunciar as invasões
do território nacional e a cobrar providências das autoridades, mobilizando, inclusive, o Ministério Público
que, paradoxalmente, chegou
a condenar a União para
que ela cumpra seu dever de fiscalização.
A falta de compromisso político das autoridades brasileiras para resolver
os problema das invasões
madeireiras e do narcotráfico na faixa de fronteira do Alto Juruá contrasta com a tese que apresenta os
povos indígenas como uma ameaça à soberania nacional;
idéia onipresente nos corredores políticos de Brasília e alhures.
As verdadeiras
ameaças à Amazônia, à sua biodiversidade, aos direitos dos povos indígenas e à Nação, são os crimes
contra o meio ambiente e contra os direitos humanos provocados por uma lógica desenvolvimentista frenética e predadora, muitas vezes beneficiadas por políticas públicas
ou, simplesmente, estimulada pela cumplicidade omissa dos governantes.